sexta-feira, 6 de julho de 2012

Saravá! (Parte I)


As relações iam-se dando dentro de uma linha psicodélica, e o flower Power comandava sentimentos e atitudes por aqueles tempos. Dentro dessa, íamos atravessar o rumo em direção ao mar, a imensidão, a prazerosa viagem ao território das baleias, cavalos marinhos e golfinhos paz e amor, ao universo desconhecido de Poseidon. A viagem consistia em hospedarmo-nos na casa de Dório, nosso amigo uns anos mais velho, que depois acabou saindo de Porto alegre, em excursão com os Dzi Croquetes, rumo ao centro do país e ao mundo velho sem porteiras. Nosso amigo tinha descolado uma quantidade razoável para três cabeças em três dias, de cannabis da melhor. Ao nos despedirmos na Rua da Praia, por volta das 22 horas, no centro de Porto Alegre, ele nos instruiu da seguinte forma:


-Bom, vamos para casa e amanhã, às 7:00 horas nos encontramos na rodoviária para pegarmos o ônibus das oito para Atlântida.
-Ok, está combinado, respondemos em uníssono, corações exultantes por irmos para Atlântida, praia considerada bacana e certamente por estar bastante suprida de mulheres bonitas e da arquitetura modernista, famosa que era por ser reduto da elite, a qual poderíamos avacalhar um pouco com nossa simples presença anti estabilishment burguês.

Não deu outra, resolvemos depois de alguns minutos da despedida, que seria um desperdício dispensar aquela felicidade e excitação que nos encontrávamos, indo simplesmente, para casa dormir, conforme o combinado com nosso benfeitor. Resolvemos dar umas bandas e tomar algumas pela cidade. Mas, já que estávamos sem baseado, pois o Dório, inadvertidamente, levou ao paranga que tinha descolado para casa, resolvemos então apelar para a trivial visita a farmácia mais limpeza do local, na Av. Borges, e compramos uma caixa de ligantes Abulemin moderador de apetite barato. Tomamos, num boteco na mesma rua, com um litro de Coca, uns três ou quatro, cada um de nós, pois os mesmos eram extremamente amargos e quando mastigados, para surtir um efeito mais imediato, tinham a inconveniência de colar nos dentes, o que resolvíamos espalitando, esfregando a língua e bebendo muita Coca, para disfarçar o gosto amaríssimo da anfetamina. Isso resultaria numa bela ligação até o meio da madrugada ou quiçá até o amanhecer, com o que, nós iríamos até em casa apenas para pegar alguns pequenos itens, pô-los em nossas inseparáveis bolsas hippies, a tiracolo e tava tudo resolvido e o mundo colorido.
Ledo engano: aquelas boletas davam uma ligação maior do que as outras mais sofisticadas. Era anfetamina pura. Um comprimido apenas, já deixava a pessoa extremamente ativa e sem o menor resquício de fome.

Ligados a mais não poder, dirigimo-nos à rodoviária, pois resolvemos, instintivamente, viajar naquela hora mesmo. Sim, pois sob efeito daquilo entrávamos numa catarse, tipo piloto automático, e num estado de amor só, com uma certeza de que tudo era maravilhoso e que tudo, em qualquer âmbito da vida e da loucura, tinha que dar certo, as idéias eclodiam, se punham e sobrepunham.

Chegando a rodoviária fomos informados de que em 1974 não haviam ônibus para a praia naquela hora, e que somente às seis da manhã as linhas faziam aquele trajeto. Não vimos nenhum problema nisso, fomos até um terminal de ônibus da Grande Porto Alegre, e pegamos o último ônibus que ia para Gravataí, distante 55 quilômetros de onde estávamos, divisa com a cidade de Glorinha, em direção ao litoral gaucho, por sua vez a uns 123 quilômetros da praia de nosso rumo .

Descemos já bastante falantes, na última parada, a nosso ver, bem próxima ao nosso éden. Dali, seguimos pela estrada, em frente, na intenção de pegar carona à 1 hora da madrugada. Os otimistas.

Num certo ponto depois de andar e beber um litro de pinga que compramos no bar próximo ao fim da linha, a viagem surfava, nem nos preocupávamos mais em pedir carona aos raríssimos caminhões e carros que trafegavam àquela hora por ali, muito pelo contrário, lembro de um Fusca azul, que parou oferecendo-se, solidário, para nos dar carona, e nós num estado de alucinação, enlevados pela sensação de extra-realidade, viramo-nos de costas para o mesmo, ficamos parados, dando adeuses com as mãos e aguardando o mesmo seguir seu destino, quem sabe, até para o lugar de nosso intento.
A certeza que outras descobertas substituíam a contento os parâmetros materiais da vida, se impunham acima de qualquer termo realístico e, além disso, a Lua nos compelia a andar, fulgurando companheira, enorme e onírica, num daqueles momentos em que o ser exulta superconsciente e sente a alma brilhar.
Aquela Lua cheia, exageradamente grande sobre nossas cabeças, devia estar seguindo a sua famosa trajetória elíptica ao redor da Terra em pleno perigeu, que iluminava toda a paisagem e se assomava aos nossos sabores de levar a vida caminhando e filosofando pela estrada, sem destino real muito bem definido, nem querendo ser.

Michel, pela ducentésima vez, relatou-nos todos os momentos mais emocionantes da Segunda Guerra, da prisão e fuga de seu pai na Rússia, do poder do tanque Tiger alemão, do desembarque aliado em Omaha, Pearl Harbour, etc., coisas que já sabíamos quase de cor graças a ele e a seu irmão, Jones, eu falava insistentemente sobre minhas vocações religiosas krishna, budista, católica, umbandista, agnóstica, espírita, etc e etc., e Crespo, sobre a vida dupla proletária e burguesa que levava, por ter dois lares, o de sua avó e o de sua tia que se alternavam na sua criação pelo fato de ter perdido sua mãe, quando ainda criança. Tudo isso entre Mutantes, Jimi Hendrix, Traffic, Raul Seixas, Vinícius de Morais, Milton Nascimento, Novos Baianos, Led Zeppelin, Alice Cooper, Deep Purple, e todos os outros que cantarolávamos entre os papos. Era assunto e som para muitas e muitas horas de conversa ininterrupta e eu, de tanto apertar as mãos com os dedos cruzados, de tanta constrição, até acabei ficando com a pele entre dedos toda em carne viva.

Resumindo, como a Free Way ainda não estava pronta, fomos pela estrada velha, a mais bonita, cheia de curvas e árvores nas duas laterais, até Santo Antonio da Patrulha, uns 40 quilômetros distantes de Gravataí. Próximo a essa cidade, atravessamos pelo campo aberto para as obras da auto-estrada, que naquele lugar já era uma faixa de asfalto, quando apareceu uma Kombi, caindo aos pedaços, que aceitou uma gorjeta para levar-nos até Osório, cidade recepcionista para os destinatário das praias do norte gaúcho e lá, já amanhecendo, solicitamos uma passagem para Atlântida. Bateu na trave, de novo. Só haviam passagens àquela hora para Capão da Canoa, praia vizinha a uns dois quilômetros de distância do nosso destino. Não teve problemas fomos até lá e em seguida caminhamos até Atlântida!

Chegamos lá por umas nove horas da manhã, nosso anfitrião, desconfiando que não havíamos conseguido vencer a ansiedade, uma vez que ficou esperando sozinho na rodoviária, viajou para Atlântida conforme o combinado e nos recebeu semi desmaiados em sua casa a qual já tinha nos passado o endereço, quando nos despedimos. Dormimos até a tarde, quebrados, na praia de Atlântida, quando então começou a nossa festa, propriamente dita.

Ver continuação, livro Fé na Estrada, in Saravá, pag. 209.

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