terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Conversa inicial ou crossing the universe

Como bola da vez para o fim de semana, tínhamos a praia de Torres, acompanhando uma amiga de minha mulher à época, que tinha um pai, segundo nos contou, bem locão.

Explicando: ele era apelidado de “Guru” e tendo se aposentado de um banco estatal havia alguns anos, foi para essa praia e lá construiu uma pequena cabana na reserva ecológica do lugar, coisa que não durou muito tempo, pois descoberto, foram retirados ele e cabana, morro abaixo, pois “aquilo era área de reserva natural e lá ele não poderia permanecer”, disseram os fiscais do Ibama e da prefeitura do lugar.

Retirado de lá, como dito, alojou-se em alguma pensão ou hotel da cidade e em pouco tempo já havia construído outra morada semelhante a primeira, apenas em num lugar mais recôndito, em meio a bela natureza do lugar. Não deu outra: assim que o descobriram plenamente instalado, expulsaram-no novamente.

O bom “Guru” não se deu por vencido e, apesar das ameaças de punição pelos fiscais do local, percorreu a mesma trajetória da vez anterior, e em pouco tempo já estava reinstalado no majestoso parque. Dessa vez, para incredulidade dos responsáveis pelo lugar, ele cultivou até uma pequena hortinha para consumo de sua subsistência pessoal, tais como, plantação de couves, alfaces, tomateiro, cebolinha, batatas e outras milongas mais.

Ele argumentava obstinadamente, que era irmão daquele lugar e que estava ali para cuidar, como no verso de Raul Seixas, um “carpinteiro do Universo”, zelando pelo que é da natureza, quase mais obedecendo a um chamado do que estando ali por vontade própria. Sua insistência louca era tamanha, que acabou sendo reconhecida pelo próprio Estado, que, cansadas suas autoridades locais de tentar dissuadi-lo de morar no ambiente de preservação natural, nomearam-no “guarda florestal honorável e provisório” da tal Reserva, permitindo enfim, a permanência de seu barraco, assim como dele mesmo, mediante certos afazeres de um bom caseiro, como, orientar os visitantes das trilhas a conservar a limpeza, a portar-se com cuidado no interior da mata, não acender fogo, etc.

Esse era o perfil do pai da amiga com quem iríamos passar o feriadão e só por esses detalhes, já teríamos ficado bastante interessados em ir e conhecer o velho resistente.

Juntava-se a isso, o fato de que o lugar era de uma beleza imaculada, segundo sabíamos, cercado de plantas e bichos exóticos por todos os lados.

A amiga também nos contou que havia próxima a casa, uma cascata incrível da qual jorrava água cristalina e na qual o velho, inteligentemente, instalou um prolongamento com uma mangueira que ia dar num chuveiro improvisado de água fresca.

A Prefeitura até instalou, a poucos metros dos fundos da casa, um banheiro químico importado, presenteado ao município por uma indústria que estava instalando-se no local, proporcionando com isso, melhores condições de estada para seu novo guardião da floresta.

Enfim, ele levava uma vida paradisíaca naquele lugar.

Viver um feriadão, num lugar que tinha tudo para ser maravilhoso, cozinhando num fogão a lenha, improvisando-se quase tudo e iluminando-nos a luz de velas, era um sonho. Sair do sistema, levar a vida mais em contato com a natureza.

Chegamos. O velho era uma pessoa extremamente pura e amável, sua simpatia transbordava por todas as suas palavras, ficou muito entusiasmado com a nossa presença e conseguiu transformar a sua humilde choupana num lugar confortável e agradável de se estar. Ele falava de uma maneira doce e amiga sobre os efeitos do cigarro, que nunca fora de beber regularmente e, que de uns tempos para cá, nem sequer por esporte ele bebia, dedicava-se somente as ofertas da natureza, que eram abundantes naquele lugar, entre outros assuntos ricamente fundamentados com passagens filosóficas. Ele explicava que todos na natureza éramos irmãos, portanto, que devíamos amar e respeitar a vida em qualquer forma que ela se apresentasse, por isso, atacar nosso próprio organismo, com vícios e maus costumes, por si só, já era uma desatenção com a vida de todo o Universo.

Sua filha ficava meio sem graça pelas palavras do velho, imaginado, talvez, que na volta para sua vida cotidiana, todo mundo no local onde trabalhava, ficasse sabendo e pensando que seu pai era um louco. Minha mulher, de boca aberta, parecia estar ouvindo um Lama do Tibete falar e eu, sentia que finalmente encontrara um grande amigo espiritual. Crossing the universe.

Ficamos o tempo todo trocando viagens e, inclusive, lhe disse que eu era seu irmão, pois naquela época eu já desconfiava que todos somos parte do todo, e como tal, estamos interligados, de alguma forma que eu não sei explicar, como numa grande teia universal da existência.

Passadas algumas poucas horas da nossa chegada, ele começou com um comportamento estranho, ou seja, de vez em quando ele se aproximava de mim e dizia: “precisamos subir lá no morro para conversar”, nas primeiras duas vezes eu não dei bola, pois havia uma conversa iniciática entabulada, mas ficava um tanto o quanto culpado, sem saber exatamente por que, com relação àquela atitude dele. Apenas, um tanto confuso com o compromisso de uma conversa que eu imaginava ir além da trivialidade, sorria e respondia que sim, com a devida reverência.

A velha paranóia começou a querer ocupar seu espaço.

Nós traçamos algumas convenções, antes de sair de casa, com relação a nossa anfitriã, e tivemos todo cuidado no sentido de não despertar as suspeitas dela com relação a fumarmos coisas diferentes, porque sabíamos que a mesma, era careta! Então, o que seria? Teria ele alguma bola de cristal para saber o que eu fazia quando estava em casa com minha mulher ou em festas com os amigos? Eu estaria com algum odor diferente, tipo de marijuana?

Eu, com meu lado paranóico e desagregador de pensamentos, comecei a imaginar mil coisas, tipo: "nada é de todo bom", "seria o velho um maluco dissimulado?", "estaria o velho pensando em me empurrar lá de cima?" Pensei até, para meu posterior auto constrangimento, na possibilidade do velho ser gay enrustido. Passavam-se umas horas, e lá vinha ele de novo, saindo do mato e chegando perto mim repetindo: “Nós precisamos subir a trilha do morro pra conversar...”

O medo batia palmas na minha cerca, eu reagia e dizia pra mim mesmo: -Não! Esse é um homem de bem! Ele harmonizou-se com a natureza, não pode pensar essas coisas fétidas de que só eu sou capaz...E fazia tudo para me manter equilibrado.

Próximo a casa havia uma trilha de uns duzentos metros, sulcada na grama, que dava para o alto de um promontório em frente ao mar, que o velho chamava de morro. Eu já estava cabreiro, com o tal “morro”, então nem me aproximava do mesmo, ia para os lados da praia, ou me embretava no mato com as gurias, que passavam também horas fazendo altas experiências gastronômicas naquele inusitado fogão à lenha.

Jantamos. O velho mesmo fez para nós, um estrogonofe de legumes sensacional. Naquela década recém estavam aparecendo os restaurantes vegetarianos, se não me falha a memória, em Porto Alegre, natureba mesmo, só tinha a macrobiótica, que chamávamos de macrô, onde íamos almoçar com os amigos, mais por uma questão de fazer parte de uma sociedade alternativa do que de preservação da saúde mesmo. Ao anoitecer, eu que nunca fui de me mixar por pouca coisa, principalmente se desconhecida, peguei um cigarro, uma caixa de fósforos amiga e em face da lua estar crescente, iluminando razoavelmente o terreno, resolvi subir o tal promontório, em busca do velho e do misterioso assunto que ele tanto precisava falar comigo.

(Primeira parte)

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Quem não acredita ser sua própria luz a fonte da vida, verdadeiramente não crê em Deus.
(místico indiano)