domingo, 20 de maio de 2012

Rusgas


Passeei furtivamente por outro momento de intensa
prova emocional. Sim, besta, eu fugi de ti numa certa
manhã de sol, enquanto dormias fundo, na cama ao
lado da minha, na casa de meus avós e fui procurar
sarna para me coçar na rua em que nasci.
Isso havia ficado esquecido como uma felpa
adormecida em meu coração e, por muito tempo,
permaneceu no subconsciente, esse baú de coisas velhas,
que prefiro fazer de conta não existir, desde aquela
manhã de sol em que fui sozinho passar em frente à
casa de minha infância.
Vesti-me e tomei um rápido café, já com a ideia
engendrada em minha cabeça. Beijei minha avó
carinhosamente na testa e nas bochechas, como
habitualmente fazia enquanto eu ainda gozava de sua
companhia nesta vida, e saí. Disse a ela que estava indo
tirar umas fotos da praça central, a Tamandaré, que
ficava a poucas quadras da rua Dom Bosco, onde
estávamos, e que voltaria logo, certamente antes que
meu amigo acordasse. Dirigi-me para lá excitado e
sestroso e quando estava a mais ou menos uns trinta
metros do endereço que procurava, certo que iria ver
apenas a velha construção, quem eu vejo saindo pela
porta da frente da mesma?
Meu pai. Ele havia voltado para Rio Grande e estava
morando na velha casa de meus avós com a sua nova
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esposa, com a qual eu também não tinha nenhum
contato.
Senti um calor subir pelo meu corpo, o coração bater
mais forte, trocando imediatamente de posição, do peito
para a garganta, minha respiração acelerar e o chão
tornar-se mais leve ao contato com meus pés.
O que fazer agora?
Continuar andando em sua direção? Dar meia volta e
bater nos bolsos, simulando o esquecimento de alguma
coisa?
Cumprimentá-lo de passagem? Parar para
perguntar-lhe como andavam as coisas, já que não o
via há uns cinco anos? Minto, no entremeio desse
tempo, uma ocasião o vi de relance quando chegava e
ele saía da frente do edifício onde morávamos, numa
rara vez em que fora visitar meus irmãos pequenos,
Quem sabe eu até o abraçava? Todas essas dúvidas
galopavam em velocidade alucinada confundindo-se
em minha mente. Pois desconfio, agora, que meu
pensamento era de ver uma simples alvenaria, mas o
intento de meu coração era bem outro...
Diminuí instintivamente o passo. Era um daqueles
momentos cruciais em que o sim ou não apresentam-se
molestos em nossa vidas, como dar um beijo roubado,
comprar algo que queremos muito apesar de nossa
precariedade financeira, resolver ir ou não a uma certa
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festa onde estará a primeira pessoa por quem nos
apaixonamos e não nos dá bola. Coisas assim. É o que me
ocorre. É impossível deixar-se para trás, apagar-se, os
sentimentos de amor, principalmente paternos ou filiais,
de uma hora para outra, simplesmente porque perdeu-se
o vínculo entre as partes. Mas também seria praticamente
impossível, sem muita reflexão e compreensão, inclusive,
à partir de esclarecedor acompanhamento psicológico
profissional, simplesmente superar os momentos difíceis
que passei juntamente com meus irmãos e minha mãe
na época que meu pai claramente forçou a sua exclusão
da casa onde morava com o resto de minha família,
quando eu ainda estava hospitalizado.
Eu inconscientemente carregava uma árdua
sensação de responsabilidade pela separação de meus
pais, mesmo porque era da minha natureza emotiva
querer assumir as dificuldades das pessoas do mundo
com o qual eu me relacionava, assim como sofrer as
amarguras exteriores a mim, mas das quais eu tomava
conhecimento. De certa forma, eu via todo o ser
humano como indivíduo de uma única aldeia, da qual
eu fazia parte. O sentimento continua.
Aqueles foram uns desses segundos que passam em
câmera lenta, que demoram uma eternidade para
transcorrer. Mas aí ocorreu o inusitado: meu pai, que
devia estar num estado semelhante ao meu, pois
certamente sentia também algum peso por não nos
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falarmos desde que eu saíra de casa, assim que me viu,
ele também diminuiu o passo. Mas virou-se, dando as
costas para mim, pondo-se a observar, disfarçativamente,
umas caixas com frutas ou legumes, que estavam
expostos num armazém a uns poucos metros da porta
por onde saíra.
Acho que ele não segurou a onda daquele encontro.
Certamente não sabia o que fazer, e isso devia ser muito
penoso para ele.
Penso que segundo o seu modo de perceber as coisas
e seus conceitos de amor totalmente distorcidos,
limitados pelas duras penas que também lhe foram
incutidas na sua própria infância, ele sentia-se
dilacerado pela minha rebeldia e maneira de sair de casa,
deixando-o abandonado aos seus próprios problemas. Eu
era o bode expiatório contra todas as agruras passadas
por meu pai e contra as quais ele transitou calado e
passivamente. Quem sabe, assustou-o muito o fato de
descobrir que esteve em estado de choque o tempo todo,
por não reagir junto a seu próprio e tirano pai. Acredito,
também, que mesmo desengonçadamente ele me
amava, pois devia se enxergar no advento da minha
revolução contra a sua ditadura. Papos psicológicos.
Todo mundo tem os seus.
Eu não tive dúvidas, num primeiro impulso minha
vontade foi de sair correndo dali, pois já imaginava mil
sensações entre abraçá-lo ou ao menos trocar algumas
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palavras com ele. Mas isso se desvaneceu como a
fumaça de uma tragada ao vento. Minha atitude foi
atravessar de imediato, da calçada por onde vínhamos
para o outro lado da rua, somente voltando alguns
metros adiante, sem olhá-lo mais, sem mais conversa,
riscando-o definitivamente, naquele momento de minha
vida, de qualquer impulso de amizade ou qualquer
afeto.
Senti-me definitivamente abandonado e acredito que
aquela, após a dissidência, foi a primeira e única chance
que tivemos, por toda vida, de experimentar qualquer
reconciliação entre pai e filho. A sorte estava lançada.
Claro que fiquei bastante desolado com a consolidação
do afastamento que aquela separação me causou. Mas
ao mesmo tempo lavei minha alma de qualquer culpa,
pois ainda havia resquícios de alma e de culpa. Talvez
por eu ter agido erroneamente quando abandonei
minha casa, por não concordar praticamente em nada
com ele, negando-me, inclusive, a contribuir com o
pagamento da prestação de uma compra.
Passei algum tempo me vangloriando quando me
perguntavam por meu pai, de tê-lo deixado de cara no
chão, por ter mudado de lado de calçada apenas para
não falar com ele, por não perdoá-lo. Mas a verdade
era outra: eu sentia uma grande raiva por ele ter se
virado na hora em que nos encontraríamos frente a
frente, e que talvez tivesse havido até a possibilidade
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de ser abraçado, ao menos uma vez na vida, que eu me
lembre, por aquele ser tão difícil de se lidar. Depois,
decorridos alguns anos, eu passei a pensar que aqueles
elos de frieza que vinham de pai para filho desde os
tempos de meu avô, quem sabe pudessem ter sido
quebrados por mim, que começava a me dispor a fazê-lo.
Meu irmão caçula era o único que tinha contato com
ele e contou-me, pouco tempo após esses fatos que
acabei de narrar, que ele lhe falara haver tido um sonho
em que eu vinha e abraçava-o pelas costas em carinhos e
afagos. Isso pra mim representava a reconciliação enfim,
a sedimentação de todo o amor perdido que ambos
nutríamos um pelo outro. Porém, na hora que soube disso
eu demonstrei muito pouco interesse pelo assunto, mas
assim que fiquei sozinho em meu quarto, emocionado,
chorei de consolo e satisfação por sabê-lo de alguma
forma, finalmente, meu pai.
Essa história povoou por muito tempo meus
pensamentos, pois se havia alguma forma de acabar
com a distância entre meu pai e eu, o faria de bom gosto,
pois me cria o eleito da natureza, para desfazer esse nó
cego do destino. Quebrar esse feitiço.
Os anos se passavam e eu escrutinava meu coração
em busca de algum sinal de bom tempo para mudar
totalmente o curso da minha vida. Eu sabia que tinha
de enxugar as lágrimas do passado e tentar pousar
aquele avião de sentimentos, sem o apoio de nenhum
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trem de aterrissagem, num pouso forçado, de barriga
mesmo, para aliviar enfim o atrito entre a rebeldia e a
calma da paz duradoura tão necessária ao bem viver,
que eu sentia ser possível, mas não sabia como fazê-lo.
Essas ideias começaram a cristalizar-se em minha
mente. Sabe como é: paz e amor bixo, amor
transcendental, etc., tão em voga naqueles anos, talvez
estivessem me influenciando um pouco a perdoar.
Mas, com relação a meu pai, um dos traços mais
fortes do seu caráter era a teimosia. Além da teimosia
em não se harmonizar comigo, inesperadamente outra
face deste sentimento me atingiu. Os medicamentos
para a pressão arterial ministrados no hospital onde
meu pai se encontrava internado por conta de uma crise
foram achados jogados no lixo. Contra todas as minhas
expectativas veio encontrá-lo a morte, essa desmancha
prazeres, insuperável e irreversível estação derradeira
da vida.
Fiquei pasmado, pois sempre acreditamos que vamos
ter tempo de fazer isso ou aquilo, antes que a sinistra
ceifadora se intrometa em nosso caminho, mas aí
quando vemos: já era. Não consegui a tão esperada
trégua com meu pai.
Então é isso, mesmo assim, vai coração, mete tua
bronca, berra alto que mais acima do desafeto ainda
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existe o amor, e com ele te aquecendo, permanecemos
na estrada indo sempre. Mais uma vez, à luta.
...e fim de papo, não me perguntes mais nada amigo
Jones, pois isso é tudo que eu consigo te contar agora,
meu Bruder.
Praia, vamos para a praia, besta. Ao encontro da
farra recompensadora, desses dois fortes elementos,
terra e água, e para complementar, aproveitemos para
meditar um pouco sobre as coisas da vida em frente a
algum fogo restaurador. Esqueçamos, enquanto for
possível, essas rusgas mal resolvidas do ministério das
famílias.
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