quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

PSICOPERNADA

“e então o homem com toscos conhecimentos e muita imaginação criou Deus para nunca mais ter que deparar-se com a solidão insuportável da própria finitude.”

O Jones era um expert em más companhias.
São nove horas de uma noite “daquelas”. Hoje é noite de montezumas, fuzarcas mil pra nós, pois estamos experimentando um novo tipo de drink-a-rock, na verdade um novo xarope que Jones descobriu com uma dupla de irmãos, o Deni e Ednardo, vizinhos de rua do bairro onde morava e que segundo afirmavam, era muito tri, era coisa nova. Por via das dúvidas, resolvemos passar pelo crivo de nosso reconhecimento. Era um ritual de aprovação no qual éramos criadores e criaturas ao mesmo tempo. Ingerimos um vidro inteiro do remédio e saímos “decorados” de minha casa no Gasômetro.
Um apartamento quarto-e-sala, onde morava com minha mãe e três dos meus cinco irmãos. O edifício é pobre, não chega a ser um cortiço mas eu e o Alemão e o Jones adoramos, pois minha mãe e irmã adulta trabalham e os irmãos crianças não incomodam, até ajudam, indo comprar cigarros e bebidas para nós, sendo com isso, consentida a sua saída para brincar na rua, deixando liberado o apê e todo o visual que se tem das janelas. Temos para nosso regozijo e bel-prazer todo o Guaíba, com seus pores-do-sol indescritivelmente belos.
Saímos e subimos a mesma, a Rua da Praia, apelido da rua dos Andradas que possui umas treze quadras e notamos que nossos corpos perderam a propriedade do peso, estávamos leves com plumas, o chão não exercia atrito com nossos pés. A gravidade atmosférica desaparecera e comentávamos isso como médicos sussurrando impressões numa UTI. As ideias pulsavam errantes como um enxame de vagalumes a bisbrulhar em minha mente...
Nossas vozes soavam calmas e melódicas como bate papo de anjos. Nos sentíamos como almas iluminadas.
Enveredamos pela rua Independência e caminhando as onze quadras que a perfazem de ponta a ponta, incursamos pela rua Mostardeiro em suas seis quadras, até o parque Moinhos de Vento. Demos a volta pelo Parcão, que aliás inauguramos, vencendo suas quatro quadras de avenida Goethe e continuamos pela rua Vinte e Quatro de Outubro com suas seis enormes quadras, até o fim. Rolava a plenitude da paz celestial entre nós.
Continuamos a caminhada ritualística até a confluência da mesma com a avenida Plínio Brasil Milano. Subimos toda Plínio até o seu final, que somava seis intermináveis quadras em aclive, onde ela se encontra com o final da avenida Carlos Gomes. O Jones, o Alemão e eu, percebemos, então, os carros, as ruas e o caminhão que quase nos atropelou, caminhamos então por toda a avenida até o seu início, ou seja, quatorze quadras de casarões imponentes. Com poucas alternativas, descemos a avenida Protásio Alves trinta e uma quadras e seguimos fundo até o Pronto Socorro, onde esta se encontra com a avenida Venâncio Aires. Então entramos na Venâncio com suas oito quadras que nos convidavam a pernear, pois queríamos evitar a balbúrdia da avenida Osvaldo Aranha. Mas aí já eram umas cinco da manhã e torcíamos para não acordarmos daquele sonho perfeito. Essa jornada já perfazia em torno de dez quilômetros, tudo transcorrido calmamente e com declarações universais de amor entre nós, explorações siderais, contatos com nossos e outros espíritos e as mais absurdas consternações psicodélicas que um louco poderia sentir. Éramos três em um, comunicávamo-nos, às vezes, falando propositadamente os três ao mesmo tempo, perguntando e respondendo à três, simultaneamente. Acho que perguntávamos e respondíamos até para nós mesmos, tudo isso feito num lento passo e compasso suavemente ritmado e revestido dum amor extra-surreal. E quando chegamos à confluência da Venâncio com a avenida Getúlio Vargas ficamos quase em dúvida, porém, sem percebermos, eu ao menos, fomos por ela até o final de suas quatorze quadras, quando então ela se encontra com a avenida José de Alencar.
Terminou então a segunda garrafa de uísque e nem o Alemão reclamou. Então, descemos em direção ao Centro da cidade, fazendo uma volta na quadra para a esquerda e outra para direita usando a Getúlio como espinha dorsal deste itinerário, tudo no sentido de evitar-se o fim daquela noite que já era dia, sonho de super vida, tentativa corrente de suprimir a dura realidade da vida real. Novamente Getúlio abaixo, em ziguezague de vinte e duas quadras e aí já eram dez da manhã. Os guris já começavam, o Alemão, digo, a ter diferentes pontos de vista das coisas. O que até então era tudo harmonia transcendental e divina transmudou-se em merda. A cidade estava em franca atividade e tivemos por algum “insight” a impressão que nossas pernas poderiam estar cansadas, porém não demonstravam isso. Continuamos até as esquinas da Getulio com a avenida Ipiranga, onde em algum ponto desta, os drugues já se ofendiam. Michel cuspia no Jones e este zombaresca e espartanamente, ironizava as atitudes do Alemão, e eu, eterno mediador verbal destas endengas, sugeri nos separarmos ali... E cada um de nós continuou seu caminho, sozinho, para casa... a pé, é claro!
Pois naquela idade não se tinha calos. Era pernada e batalha, amém...
Eu, Michel e Jones após o uso contumaz de álcoois, onde fundamentamos os alicerces da nossa loucura, como aliás, a maioria dos jovens da nossa e de outras gerações perdidas, viemos a conhecer em segunda instância os comprimidos vendidos abertamente em farmácias, tais como Mandrix, Mequalon, Abulemin, Pessex, Lipenan, etc., depois o baseado de marijuana, através de amizades das periferias, já na época mais excluídas e marginalizadas da cidade, tipo: Vila Cruzeiro, Conceição, São José, Santa Rosa entre outras.
A seguir vieram as drogas escrotas como Glucoenergan, que tinha que ser aplicada com seringa para cavalos, Opitalidon, Asmosterona, Fiorinal, os comprimidos em geral para emagrecer e ainda as ministradas para loucos de hospícios, que nos foram introduzidos por alguns conhecidos, passageiros de clínicas psiquiátricas. Depois vieram os sais de anfetaminas, efedrina, morfina, mescalina e todas as demais “inas” que foram aparecendo.
Finalmente e junto com tudo isso habilitávamo-nos aos embalos pinkfloydianos ao sabor de cogumelos de boi zebu e xaropes à base de ópio. Era um interbatismo de cabeças que não tinha fim. Éramos sentinelas das porcarias, como as chamávamos. Tudo de efeito psico que pintava, experimentávamos, hors-concours das quebradas que éramos. Naquele tempo, década de 1970, os loucos, magrinhos e maninhas da cidade se conheciam, saudavam-se nas esquinas como uma nova raça, em cuja um componente de desespero muito forte, tornado amor, se constituía numa justificativa para o império do subconsciente.
Na verdade experimentamos tudo que havia de disponível e inventamos mais um pouco de drogas do que se possa imaginar. É bom registrar também que os Pervintins em ampolas já faziam a barra pesar bastante, pois além de ser caros, daí em diante já havia uma grande involução do comportamento sexo, drogas e rock’n roll para a banda do crime, o que não era a nossa praia, eis aí o motivo habitual de procurarmos estimulantes em farmácias.
Eu sempre tinha uma intenção de utilizar todos os meus sentidos no intuito de descobrir tudo. Aprender sem estudar, saber pela imaginação. Era a minha vã esperança de voar, transcender ao não se sabe o que, ...a pobreza, a tristeza, talvez a vida que eu conhecia, nas dimensões do meu lar o qual nem sequer possuía e que, entretanto, detestava.
Um leva o outro e outro leva um: assim foi transcorrendo o power flower da experimental e transformadora década de 1970, por nossas cabeças e pelos nossos sentimentos, na confusa e incessante procura do que era a vida e do que ou quem éramos nós mesmos.
(Conto extraido do livro FÉ NA ESTRADA)

Nenhum comentário:

Postar um comentário